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Medida Provisória nº 1.152/2022 – Novas Regras de Preços de Transferência

JAN 2023

Em 29.12.2022, foi publicada a Medida Provisória nº 1.152 (MP nº 1.152/2022), que altera as regras de preços de transferência, aplicáveis às pessoas jurídicas domiciliadas no Brasil que realizem transações controladas com partes relacionadas no exterior.

Apresentaremos, abaixo, um panorama geral e inicial sobre as principais regras introduzidas pela MP nº 1.152/2022, que são mais alinhadas aos padrões praticados por países da OCDE.

1. Definições

A MP nº 1.152/2022 trouxe definições fundamentais para a compreensão das suas regras, com conteúdo mais abrangente do que o utilizado na legislação anterior, entre as quais destacamos as seguintes:

Transação Controlada. Relação comercial ou financeira entre partes relacionadas, direta ou indireta, estabelecida sob qualquer forma contratual ou arranjo (as normas anteriores basicamente alcançavam importações e exportações de bens, serviços ou direitos, e mútuos).

Partes Relacionadas. Uma parte será relacionada à outra parte de determinada transação se uma delas estiver sob influência, direta ou indireta, da outra, a qual possa resultar em discrepâncias frente ao que seria estabelecido entre partes não relacionadas (as normas anteriores continham um rol taxativo das partes consideradas como vinculadas).

Exemplificativamente, a MP nº 1.152/2022 aponta como partes relacionadas:

(a) A controladora e suas controladas diretas ou indiretas;

(b) As unidades de negócios tratadas como contribuintes distintos (por exemplo, matriz e filiais);

(c) As coligadas, assim compreendidas as entidades em relação às quais se verifique que uma exerce influência significativa sobre a outra, nos termos da Lei das S/A;

(d) As entidades incluídas nas demonstrações consolidadas ou que seriam ali abarcadas se o capital da controladora fosse aberto;

(e) As entidades em que uma possua o direito de receber no mínimo 25% dos lucros ou ativos da outra, direta ou indiretamente;

(f) As entidades sob controle comum, direta ou indiretamente, ou nas quais um mesmo sócio ou acionista tenha mais de 20% do capital social;

(g) As entidades em que os mesmos sócios ou acionistas, ou cônjuges, companheiros, parentes, consanguíneos ou afins até o 3º grau, detenham no mínimo 20% do capital social;

(h) A entidade e a pessoa natural que seja cônjuge, companheiro, parente, consanguíneo ou afim até o 3º grau de conselheiro, diretor ou controlador.

Transação Comparável. Transação realizada entre partes não relacionadas, cujas características permitam uma comparação material entre os seus indicadores financeiros e os indicadores financeiros da Transação Controlada.

Princípio Arm’s Length. O objetivo geral das alterações é que, para fins da apuração do IRPJ e da CSLL, toda Transação Controlada produza os mesmos efeitos que seriam verificados em uma Transação Comparável.

2. Métodos para Comparação entre a Transação Controlada e as Transações Comparáveis

Para a aplicação do princípio arms’s length, a MP nº 1.152/2022 estabelece métodos a serem utilizados na comparação dos parâmetros da Transação Controlada com os que seriam estabelecidos em Transações Comparáveis, conforme resumido abaixo:  

Método

Indicador Financeiro

Observação

Preço Independente Comparável (PIC)

Preço ou valor da contraprestação.

A MP nº 1.152/2022 indica hipóteses em que o PIC será o método mais apropriado (por exemplo, operações com commodities).

Preço de Revenda menos Lucro (PRL)

Margem bruta do adquirente na revenda para partes não relacionadas.

A legislação a ser superada pela MP nº 1.152/2022 permite apurações de maneira similar a estes métodos e até mesmo ao PIC, mas a MP nº 1.152/2022 flexibiliza elementos de cálculo, excluindo, por exemplo, as discutíveis margens fixas da atual regulamentação.

Custo mais Lucro (MCL)

Margem de lucro bruto sobre os custos.

Margem Líquida da Transação (MLT)

Margem líquida.

Divisão do Lucro (MDL)

Divisão de lucros ou perdas.

Método inteiramente novo da MP nº 1.152/2022.

Outros métodos

Qualquer elemento que produza resultado consistente com o que seria visto entre partes não relacionadas.

Inovação da  MP nº 1.152/2022. Caso escolha a metodologia alternativa, o contribuinte precisará demonstrar que nenhum método previsto na norma é aplicável ou produz resultados confiáveis no caso concreto.

 

A norma estabelece que deverá ser selecionado o método mais apropriado, assim entendido aquele que forneça a determinação mais confiável dos termos e das condições que seriam estabelecidos em uma Transação Comparável, considerando os fatos e circunstâncias das transações, as informações disponíveis acerca de Transações Comparáveis e o grau de comparabilidade entre as transações.

Caberá à Receita Federal do Brasil (RFB) disciplinar a seleção do método mais apropriado, inclusive a possibilidade de combinação de vários métodos.

3. Ajustes na Apuração do IRPJ e da CSLL

Se a aplicação dos métodos de comparação acima revelar uma discrepância entre a Transação Controlada e as Transações Comparáveis, a MP nº 1.152/2022 prevê os seguintes tipos de ajuste nas bases de cálculo do IRPJ e da CSLL:

  • Ajuste Espontâneo – Efetuado diretamente na apuração das bases de cálculo do IRPJ e da CSLL, a fim de adicionar o resultado que seria obtido caso a Transação Controlada tivesse sido realizada entre partes não relacionadas;
  • Ajuste Compensatório – Efetuado pelas partes da Transação Controlada, até o encerramento do ano-calendário em que for realizada, para gerar um resultado equivalente ao de uma operação entre partes não relacionadas;
  • Ajuste Primário – Feito pela autoridade fiscal caso não haja o Ajuste Espontâneo ou o Ajuste Compensatório, para adicionar às bases de cálculo do IRPJ e da CSLL os resultados que seriam obtidos se a Transação Controlada tivesse sido estabelecida entre partes não relacionadas;
  • Ajuste Secundário – No caso de realização do Ajuste Espontâneo ou do Ajuste Primário acima descritos, o valor ajustado será tratado como um “crédito” concedido à parte relacionada envolvida na transação, com uma taxa de juros presumida de 12% ao ano que estará sujeita ao IRPJ e à CSLL e que poderá ser reduzida a zero caso o “crédito” seja reembolsado em 90 dias, a partir de 1º de janeiro do ano seguinte ao período de apuração em que ocorreu o ajuste espontâneo ou da data da ciência do ajuste primário.

Vale notar que o Ajuste Secundário cria um mútuo fictício entre os participantes da Transação Controlada, o que possivelmente gerará questionamentos quanto à possibilidade de a Lei criar, por ficção, um negócio jurídico em detrimento da vontade das partes.

4. Regulamentação e Penalidades

A RFB regulamentará a forma pela qual serão apresentados os documentos e informações que demonstrem que as bases de cálculo do IRPJ e da CSLL estão de acordo com as regras de preços de transferência, sendo que a MP nº 1.152/2022 prevê multas de R$ 20 mil a R$ 5 milhões para o descumprimento de tais normas.

A MP nº 1.152/2022 também estabelece que, caso a RFB discorde da determinação da base de cálculo do IRPJ e da CSLL em relação às Transações Controladas, o sujeito passivo poderá ter a oportunidade de retificar a declaração ou a escrituração fiscal sem a aplicação de penalidades relativas a essas obrigações, desde que a sua conduta cumpra determinados requisitos vinculados à boa-fé e os tributos sejam pagos com multa de mora.

Espera-se que a regulamentação da RFB contribua para uma maior clareza e, principalmente, para a facilitação da aplicação dos métodos e ajustes previstos na MP nº 1.152/2022, tendo em vista que a inexistência de safe harbours (i.e., regras mais simples para contribuintes que operem dentro de certos limites, a exemplo da pessoa jurídica que tenha receita líquida de exportações abaixo de 5% do total da receita líquida) pode dificultar bastante a rotina fiscal, mesmo daqueles contribuintes que possuam uma pequena proporção de Transações Controladas.

5. Operações Específicas

A fim de permitir que um maior número de operações seja controlado por meio das regras brasileiras de preços de transferência, a MP nº 1.152/2022 prevê tratamento específico para (i) transações com intangíveis, inclusive os de difícil valoração; (ii) serviços intragrupo; (iii) contratos de compartilhamento de custos para repartição de contribuições e riscos na aquisição, produção ou desenvolvimento conjunto de serviços, intangíveis ou tangíveis; (iv) reestruturações de negócios para modificação de relações comerciais ou financeiras que resultem na transferência de lucro potencial ou em benefícios ou prejuízos para qualquer das partes; e (v) operações financeiras de (v.1) dívida; (v.2) garantias intragrupo; (v.3) gestão centralizada de tesouraria; e (v.4) seguro.

O objetivo em comum dessas previsões é impedir que as partes relacionadas manipulem os valores das suas operações, principalmente ao atribuírem a titularidade sobre bens e direitos, alocarem resultados (inclusive custos, contribuições e margens de lucro), criarem despesas dedutíveis e estabelecerem remuneração ou compensação além ou aquém do que seria praticado pelo mercado em transações semelhantes.

Em relação ao item (iii), acima, tais contratos a princípio não se confundem com o compartilhamento de custos e despesas administrativas que simplesmente beneficiem empresas de um mesmo grupo (cost sharing agreements). Contudo, se os cost sharing agreements internacionais culminarem na aquisição, produção ou desenvolvimento conjunto de ativos ou serviços, é possível que tal acordo esteja sujeito às regras de preços de transferência.

6. Processo de Consulta Específico em Matéria de Preços de Transferência

A MP nº 1.152/2022 confere à RFB o poder de instituir processo de consulta específico sobre os critérios que devem ser utilizados pelo contribuinte para a determinação do que seria estabelecido entre partes não relacionadas em Transações Comparáveis (método de comparação, indicadores financeiros etc.).

Neste ponto, a MP nº 1.152/2022 parece pretender que o Brasil possua instrumento de prevenção de disputas análogo aos Bilateral Advance Pricing Arrangements (BAPAs), utilizados em diversos países e preconizados pela OCDE como meio de se antecipar o tratamento tributário de certas operações internacionais.

Em síntese, os BAPAs visam garantir segurança jurídica para o contribuinte e para as autoridades fiscais participantes, evitando que ambos sejam surpreendidos com a utilização de critérios para o cumprimento das regras de preços de transferência que divirjam dos previamente acordados. Em alguns casos, os BAPAs têm o papel de prevenir a dupla tributação, especialmente quando envolvem autoridades fiscais de duas ou mais jurisdições impactadas pelas transações internacionais analisadas, mas esta funcionalidade não foi incorporada pela MP nº 1.152/2022, eis que o processo de consulta nela previsto contará tão somente com a participação do fisco brasileiro.

A solução da consulta terá validade de até 4 anos, prorrogável por 2 anos mediante requerimento do sujeito passivo.

A solução da consulta poderá perder efeito, a qualquer tempo, inclusive de maneira retroativa, se for detectada informação errônea, falsa, enganosa ou omissão por parte do contribuinte, e  poderá ser revisada, de ofício ou a pedido do contribuinte, se houver modificação das premissas que a fundamentaram ou da legislação aplicável.

7. Outras Alterações

Por fim, a MP nº 1.152/2022 também trouxe disposições relevantes sobre outros assuntos, por exemplo:

Procedimento amigável. A MP nº 1.152/2022 esclarece que os acordos decorrentes de mecanismos de solução de disputa previstos em tratados internacionais contra dupla tributação assinados pelo Brasil serão observados pela RFB, que revisará, de ofício, o lançamento efetuado, implementando o resultado acordado.

Definição de “paraísos fiscais” e regimes fiscais privilegiados. Para que uma jurisdição não seja considerada “paraíso fiscal” ou regime fiscal privilegiado, conforme seja o caso, a alíquota mínima para tributação da renda passa a ser de 17%.

Anteriormente, esse patamar valia apenas para as jurisdições que observassem determinados parâmetros internacionais de transparência fiscal, enquanto para os demais a alíquota mínima era de 20%.

Essa alteração é importante, porque não afeta apenas o âmbito de aplicação das novas regras de preçoes de transferência. Por exemplo, ela também impacta aplicações financeiras feitas por investidores não residentes no Brasil, pois o regime especial de tributação aplicável a alguns investimentos (como a isenção nas operações em bolsa, ou a alíquota zero para rendimentos de FIPs e FIDCs, em determinadas condições) em regra não beneficia residentes ou domiciliados em “paraísos fiscais”.

Tributação em bases universais. Na apuração do lucro real, poderão ser deduzidos os valores das adições espontaneamente efetuadas em função da aplicação das regras de preços de transferência, desde que os lucros auferidos no exterior em razão da Transação Controlada tenham sido considerados na apuração pela controladora brasileira, com o recolhimento do IRPJ e da CSLL correspondentes.

Dedutibilidade de royalties e pagamentos por assistência técnica, científica, administrativa ou semelhante. Ficam revogadas as regras que condicionam a dedutibilidade desses valores à averbação de contratos no INPI e ao registro no BACEN para fins de remessa ao exterior, que vedam o abatimento do que for devido a sócios ou dirigentes, a seus parentes ou dependentes, e que limitam a dedução aos percentuais da Portaria MF nº 436/1958.

Essas regras serão substituídas pela indedutibilidade dos montantes direcionados a:

(a) parte residente ou domiciliada em “paraíso fiscal” ou regime fiscal privilegiado;

(b) partes relacionadas, conforme definição da MP nº 1.152/2022, quando a dedução resultar em dupla não tributação, ocasionada pelo fato de o valor pretensamente dedutível no Brasil: (i) ser tratado como despesa dedutível para outra parte relacionada; (ii) não ser tratado na jurisdição do beneficiário como rendimento tributável; ou (iii) ser destinado a financiar, direta ou indiretamente, despesas dedutíveis de partes relacionadas que, na prática, resultem nas hipóteses anteriores.

8. Produção de Efeitos

A MP nº 1.152/2022 entra em vigor em 01.01.2024, mas os contribuintes podem optar, de maneira irretratável, pela observância das regras a partir de 01.01.2023.

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